A Varig e o Partido Nazista

Como a Varig ajudou o Partido Nazista a espionar em solo brasileiro durante a Segunda Guerra

Novembro de 1939, Porto Alegre. Dois meses depois da Alemanha ter invadido a Polônia e dado início à Segunda Guerra Mundial, o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) do Rio Grande do Sul fez uma descoberta curiosa no Aeroporto São João. Um amontoado de caixas com peças para montagem de um equipamento rádio-transmissor de destino misterioso. Rastreando as peças em segredo, a polícia descobriu que foram levadas por um avião da Varig, para Rio Grande, no sul do estado. Foram apreendidas pela polícia antes de chegar ao navio a vapor alemão que estava detido no Porto desde o início da Guerra, quando o Brasil declarou neutralidade.

Um relatório escrito pelo delegado responsável pelo caso, Theobaldo Neumann, um ano depois, afirmava que o rádio ajudaria a informar os corsários e submarinos alemães sobre as movimentações de embarcações inimigas na costa sul do Atlântico. Nessa época, navios da Marinha Inglesa já estavam posicionados na região. No mês seguinte, eles seriam responsáveis por afundar o maior navio de guerra alemão, o Admiral Graf Spee, em uma batalha em pleno Rio da Prata, em Punta Del Este, no Uruguai. A primeira da Segunda Guerra.

O episódio do rádio levou a polícia diretamente a Otto Ernest Meyer, fundador e presidente da Varig, então a maior companhia de viação aérea comercial do Brasil. Durante dois dias ele ficou detido prestando depoimentos sobre seu envolvimento na instalação de um equipamento de espionagem alemã em solo brasileiro.

A Origem

Descobri o episódio quase por acaso, no final dos anos 1990. Pesquisada a evolução e a decadência da industrialização da capital gaucha e achamos no Rio de Janeiro, documentos que continham vários episódios das décadas de 20, 30 e 40 do século passado, envolvendo a segunda guerra mundial. Entre eles, o episódio esquecido da Varig.

Num dos documentos, estava o relatório do DOPS que acusava Meyer de ser filiado ao Partido Nazista. No seu depoimento no inquérito, ele dá uma resposta que é uma cortina de fumaça. Dizia que não era filiado ao Partido Nazista, mas era filiado ao Deutsch Arbeitsfront, o braço sindical do partido. Inclusive, a instalação do rádio foi uma determinação que veio diretamente da Alemanha e envolveu a Varig como apoio operacional para uma ação de espionagem, em território brasileiro, onde Meyer participou pessoalmente.

Piloto veterano da Primeira Guerra Mundial, como boa parte dos filiados ao Partido, filho de um oficial alemão que foi adido militar no Pacífico, Otto Meyer não parou no Brasil por uma coincidência. A criação de uma companhia de aviação civil também não era um mero sonho de um imigrante europeu na América do Sul, como a lenda de fundação da Varig contou durante anos.

A Missão

Nos anos 1920, as potências do mundo começaram seus projetos de aviação comercial. Os primeiros foram os franceses, com a criação da Aéropostale. Como viria a ser em todos os países, o envolvimento do Estado e das Forças Armadas vinha junto com a participação civil. Em todos os lugares, a aviação era vista como alvo de interesse militar em potencial e como algo importante para as relações internacionais, para expandir a influência do país no exterior.

No mesmo ano que a República de Weimar funda a sua estatal de aviação, a Deutsche Luft Hansa Aktiengesellschaft (mais tarde apenas Lufthansa), Otto Meyer e um grupo de veteranos da Primeira Guerra são enviados para a América do Sul. Cada um deles, com a missão de apresentar propostas de criação de companhias aéreas nacionais, com participação de empresários locais, que teriam a possibilidade de conseguir aviões alemães para começar o negócio. Além da Varig, a Pluna, no Uruguai e uma série de outras empresas, como na argentina, Chile, Equador e Colômbia, foram surgindo com o mesmo modelo de origem e formando uma rede própria, o Condor Syndikat.

Células Nazistas

Meyer desembarcou primeiro em Recife. O nordeste brasileiro era visto como um ponto estratégico para voos que ligassem o Velho Mundo e o Novo Mundo. O primeiro contato dele com a proposta de criação de uma empresa aérea foi a família Lundgren, que fez fortuna na indústria têxtil, dona das Casas Pernambucanas. De origem sueco-alemã, os Lundgren eram conhecidos pelo envolvimento com o nacionalismo alemão. Depois da Guerra, viria à tona a participação deles na criação de células nazistas no nordeste, algumas abrigadas dentro das próprias fábricas do grupo, como em Rio Tinto, na Paraíba.

Mas além deles, Meyer não conseguiu maior apoio para sua idéia. Sua segunda tentativa foi em Santos, junto à empresa alemã Theodoro Wille, que nasceu com um imigrante de Hamburgo e desde o século 19 fazia comércio entre Brasil e Alemanha, exportando o café brasileiro para a Europa, importando de lá bens de consumo como louça, talheres, máquinas e produtos químicos. Esta também foi outra empresa alemã que, anos mais tarde, se descobriria, ajudou com a espionagem no Brasil.

O fracasso na segunda tentativa levou Meyer direto para Porto Alegre. A capital gaúcha de então tinha uma das colônias alemãs mais fortes do sul da América. Além de liderarem algumas das empresas mais importantes do Quarto Distrito, os alemães tinham sociedades culturais, participavam institucionalmente da política, tinham dois jornais diários publicados em alemão, um católico, outro luterano, e aqui a ideia deu certo.

A Certidão de Nascimento

Otto Meyer chega em Porto Alegre em 1926 com a mesma proposta que outros pilotos alemães repetiam pelo continente, em busca de sócios para um sociedade anônima e isenção fiscal. Em uma assembleia no Clube do Comércio de Porto Alegre, reunindo boa parte dos empresários da época, a maioria deles alemães, ele consegue o apoio que faltou nos outros dois locais. O governo do Estado o Estado do Rio Grande do Sul entra com 20% das ações. O Presidente Borges de Medeiros, positivista que sucedeu Julio de Castilhos e cacicou o RS por 25 anos, acolheu entusiasticamente a empresa e a passaria para Getulio Vargas no ano seguinte, o mesmo homem que quinze anos depois, como presidente nacional, declararia guerra à Alemanha de Adolf Hitler.

Dois anos depois da criação, Getúlio já colheria o trunfo de ter uma empresa aérea ao seu lado. No dia em que lançou sua candidatura à Presidência da República, pela Aliança Liberal, com um discurso histórico no Rio de Janeiro, na Esplanada do Castelo, Getúlio – que havia se desincompatibilizado do papel de Ministro da Fazenda de Washington Luiz para concorrer ao Catete – saiu do Rio Grande do Sul e voltou no mesmo dia, a bordo de um avião da Varig.

Um ano depois, durante a Revolução de 1930, a empresa estava pronta para operar como Força Aérea do lado gaúcho: Osvaldo Aranha, secretário de Interior de Getúlio, voou ao Uruguai junto com Meyer, para comprar metralhadoras que foram instaladas nos aviões. No fim das contas, eles não chegaram a entrar em combate, porque não teve luta.

A Varig se tornou um instrumento de poder. O Rio Grande do Sul era o quarto estado mais importante economicamente, mas estava muito atrás de São Paulo, Rio e Minas. Como essa empresa vai surgir justamente aqui? A economia gaúcha, por si só, não tinha atrativos ou poder para sustentar uma empresa de aviação, que chegou a se tornar internacionalmente importante. Isso aconteceu por conta dessas articulações políticas, do Partido Nazista Alemão e da colônia alemã.

O partido

O início dos anos 1930 foi de ascensão da Varig, enquanto o Partido Nazista ganhava mais e mais simpatia dentro de uma Alemanha em crise econômica. Em 1933, Adolf Hitler, veterano da Primeira Guerra como Otto Meyer, se torna Chanceler e o partido ganha a maior bancada do país. No ano seguinte, em 1934, já não havia mais República de Weimar e Hitler era o Fuhrer.

Nessa época, era difícil enxergar a linha que separava um patriota alemão de um nazista. O partido de Hitler contava ainda com a simpatia dos conservadores do mundo ocidental, como Henry Ford, que chegou a ser condecorado pelos nazistas. O nazismo era visto, por quem estava fora da Alemanha, como o regime que reconstruiu um país arrasado pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial, da crise aguda dos anos 1920, que restaurou o pleno emprego, o crescimento econômico, o orgulho nacional e, acima de tudo, era anticomunista. Num mundo muito polarizado pela Revolução Russa, pelo avanço da esquerda ao longo dos anos 1920, há entre os conservadores, uma simpatia declarada pelo novo regime que surgia para combater as ideias que vinham da nova potência chamada União Soviética.

Na colônia alemã de Porto Alegre não era diferente. Fotos antigas da sede da SOGIPA (Sociedade de Ginástica de Porto Alegre), de um desfile de 1º de maio organizado no campo esportivo de AJ Renner e do aeroclube da Varig, mostram bandeiras com suásticas penduradas por toda parte. A bandeira do partido que havia substituído a bandeira nacional. O evento de Renner, aliás, realizado em 1936, contou até com a participação do cônsul dos Estados Unidos no Rio Grande do Sul.

Virada

O quadro começa a mudar quando o Partido envia uma diretriz pedindo para intensificar a nazificação em entidades e órgãos compostos por alemães no mundo todo. A colônia de Porto Alegre racha. Muitos dos empresários não queriam se envolver com partido, nem romper com outros parceiros comerciais. Por exemplo, um vendedor de carros da capital que foi procurar o cônsul norte-americano para explicar porque não poderia mais vender marcas dos EUA. Segundo o homem, mesmo sabendo que seus clientes preferiam os carros americanos, a pressão do consulado alemão para que ele vendesse apenas marcas nacionais era mais forte.

Em 1934, o próprio governo brasileiro – Getúlio Vargas como presidente e já de briga com Borges de Medeiros – assinou os Acordos de Compensação, concordando em exportar carne, tabaco, café, couro, algodão para a Alemanha, em troca de importar uma grande quantidade de manufaturados alemães. Um ano depois, Getúlio também assinou um acordo com os Estados Unidos, oferecendo concessões tarifárias aos produtos importados, em troca de liberação de tributos de exportações brasileiras.

Voltando às origens

De 1939 a 1943, Mayer dividiu-se entre o Brasil e a Alemanha, em vários vôos bate-volta a bordo dos aviões da Lufthansa. Como oficial do exército Alemão, Mayer voltou à Alemanha em 1939 e participou na campanha dos Balcãs e na operação Barbarossa para invadir a UNIÃO SOVIÉTICA. Em Abril de 1942, foi colocado no regimento de infantaria Großdeutschland. Esta duplicidade de atividades ele exercia sob segredo do governo brasileiro que, mesmo sabendo de tudo, escondia o fato da população.

A situação muda em 1942. Durante cinco dias, seis navios mercantes brasileiros foram afundados na própria costa, deixando mais de 600 mortos. Todos atacados pelo mesmo submarino alemão, o U-507 (esses ataques foram realizados sob ordens e com a coordenação de Oto Ernest Mayer, com o uso dos rádios das estações costeiras da Varig). Sob pressão popular, Getúlio declara guerra à Alemanha e à Itália. No Brasil, estava proibido falar em alemão e qualquer tipo de atuação política internacional ou vinculada a países estrangeiros.

Mesmo assim, Meyer não obedeceu. Uma lista apreendida pela polícia política na sede do Partido Nazista, em Porto Alegre, mostra que ele continuou fazendo seu trabalho, alem de doações regulares, mesmo depois da proibição. E mais: aviões da Varig ajudavam a distribuir propaganda nazista pelo interior do estado, enquanto pilotos seguiam trabalhando para o partido. Um deles, Xavier Greiss, foi o responsável por ligar os nazistas gaúchos aos do Uruguai.

Retaliação

Como resposta, o governo brasileiro faz uma intervenção federal na Varig, afastando Meyer do cargo de presidente. Em seu lugar, o mesmo Getúlio Vargas que ajudou a construir a empresa anos antes, colocou o ex-piloto Érico Assis Brasil. O novo presidente, porém, fica pouco tempo no cargo, porque acaba morrendo em um acidente aéreo na região metropolitana de Porto Alegre. A presidência fica então com um indicado do próprio Meyer, que seguiu no Conselho da empresa até sua morte em 1965, um funcionário (o primeiro a ser contratado após a fundação da empresa) chamado Rubem Martin Berta.

A Tropa de Choque

O envolvimento de Otto Ernest Mayer com o nazismo não era trivial, era muito consistente mesmo. Essa lista tem alguns outros nomes conhecidos, como João Neugebauer, Adolfo Trein, Hans Wallig e João Wallig”. Tudo documentado.

O período que vai dos anos 1930 até a decisão do Brasil de entrar na guerra (1944), foi como uma montanha-russa para os alemães que viviam no Brasil. Eles caem de posições de prestígio na sociedade para terem suas lojas apedrejadas, as sociedades culturais fechadas, proibição total do uso da língua. Eles são perseguidos, em alguns casos presos, têm seus bens apreendidos, várias empresas de origem alemã são fechadas, expropriadas pelo governo. É um reviravolta muito profunda, muito acentuada.

Em meio a tudo isso, Meyer permanece intocado, mesmo depois da apreensão da lista na sede do Partido Nazista em Porto Alegre. Relatos de vários trabalhadores da Varig, na época, contavam que, mesmo depois da declaração de guerra, a empresa continuava favorecendo quem tinha origem alemã ou falasse alemão na hierarquia. O depoimento de um funcionário diz que “a Varig não tinha tripulante preto (…) os funcionários competentes eram respeitados, mas sem ser ‘alemão’, não se era membro do clã” e não tinha chance de progresso ou carreira dentro da empresa, por muito tempo, mesmo depois da guerra”.

Nacionalismo

A ligação entre a Varig e o Nazismo, também pode ser encontrada nos Estados Unidos. Os americanos também espionaram a Varig. Quando o Brasil rompe com a Alemanha, Osvaldo Aranha, então ministro das relações exteriores, escreve uma carta pedindo que os EUA passem a vender peças de reposição para os aviões da Varig e na resposta tem um conteúdo observando detalhes da empresa que é o reconhecimento oficial de que os americanos sabiam que a empresa estava ligada aos nazistas.

O vínculo, aliás, não era surpresa nem para o próprio governo. Em outro documento da mesma época, o Brigadeiro Eduardo Gomes, pioneiro da aviação brasileira, que chegou a ser candidato à presidência, escreve indignado para Osvaldo Aranha questionando como a americana Panair poderia receber mais incentivos que a Varig, que era uma empresa nacional. Aranha responde: “meu caro Brigadeiro, a gente não pode ter tanta ingenuidade, não existe empresa nacional neste caso. O que existe é uma empresa alemã, a Varig, e uma empresa americana e os americanos são nossos aliados, ao contrário dos alemães que não cansam de atitudes rasteiras, inclusive fazendo espionagem em nosso território”.

Se a ligação nazista da Varig era de conhecimento público, como então ela ficou esquecida pela História? Até hoje, a história oficial da criação da empresa é de que ela teria nascido do sonho de um imigrante alemão e sua iniciativa individual. A resposta talvez esteja na “operação-abafa” que aconteceu em torno das descobertas de documentos históricos no início dos anos 2000, quando o maior jornal do Rio Grande do Sul vetou a publicação de uma reportagem sobre o caso. A Varig, mesmo não tendo mais o governo estadual como seu acionista e mesmo em crise, ainda era uma das maiores empresas aéreas do país. A Folha de S. Paulo foi um dos únicos veículos que publicou a respeito. Vale lembrar também que, entre 1931 e 1939, o governo Vargas flertou abertamente com o Integralismo de Plinio Salgado, o mais legítimo representante no Brasil das tiranias sanguinárias que imperavam na Italia, Alemanha, Espanha e Japão.

Estudando-se, á luz dos processos e documentos históricos, as relações do personagem no Brasil na época antecedente e durante a Segunda Guerra Mundial, não há dúvidas de que Otto Ernest Meyer era, sim, um nazista.

Embora ser nazista enquanto a guerra acontecia não tivesse as definições tão claras como hoje, pela sua análise, ninguém teria se envolvido tão profundamente com a espionagem, caso não se identificasse com os ideais do partido. Há uma responsabilidade muito grave nesse caso. O tipo de ação da qual Meyer participou, foi feita em vários portos do Brasil e deu suporte logístico para a atividade dos submarinos alemães que afundaram navios brasileiros e mataram mais de mil pessoas, na costa brasileira, a partir de 1942. Morreram mais brasileiros na guerra aqui do que na frente de batalha na Itália, onde a Força Expedicionária Brasileira (FEB) perdeu cerca de 500 militares”, lembra o historiador.

O que mostra a inclinação para o autoritarismo dos governantes do Brasil na segunda metade do século 20 é o fato de Meyer ter continuado tendo sua vida normal. Não foi incomodado, de maneira nenhuma, no pós-guerra, toda essa história da vinculação com o nazismo foi abafada e, nesse abafa, existe uma cumplicidade muito ampla do Estado brasileiro.

Alexandre Fortes*Alexandre Fortes é Historiador, foi Professor Associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro na área de História Contemporânea, atualmente é Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da UFRRJ.

 

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